Este post é do parceiro "Mestre Joca" e foi publicado aqui no Mocambo logo no início dele e fala de sua paixão por automobilismo e sua aventura para vir a Brasília assistir os Quinhentos Quilômetros de 1969, vencido pelo Elgar GT 104 da Dupla brasiliense Toninho Martins e Luis Claudio Nasser, e seu quase envolvimento com grupos estudantis na época da ditadura militar.
Vale a pena ler todo o texto.
"O ano era 1969, eu morava em Anápolis e corridas de automóveis eram a minha paixão. Não perdia uma que fosse realizada no Planalto Central, fosse em Goiânia, Brasilia, Belo Horizonte e até Inhumas, imaginem. Mas o grande lance era mesmo as corridas de Brasilia, principalmente os 1000 Km, uma espécie de Mil Milhas local, onde o pessoal do Planalto media forças com as grandes equipes, carros e pilotos de expressão nacional.
Naquele início de setembro ia rolar os 500 KM, prova noturna imperdível que usava o mesmo célebre circuito da Rodoviária. Sem grana, e vítima de uns compromissos familiares de última hora, perdi minha boquinha habitual no carro de uns amigos e tive que me virar na beira da estrada em busca de uma carona providencial.
O tempo passava e meu desespero ia aumentando pois eu via se aproximar a hora da largada - meia noite - e nada de carona. Sem esperanças, comecei a voltar para casa e quando passava perto da Rodoviária dei de cara com a Ana, uma morena baiana de uns 19 anos e figurinha manjada nos meios estudantis da cidade.
Estávamos em plena ditadura, governo Médici, e a barra andava bem pesada no meio do movimento estudantil. Eu gostava de participar das assembléias dos secundaristas, mais por curiosidade que por idelologia. Ali conheci a Ana, ativista atuante do movimento e ligada ao Partido Comunista Brasileiro. Sua função era infiltrar-se no meio dos ginasianos, promovendo debates, encontros culturais e cooptando gente da turma para a "causa". E isso ela fazia com um bom humor, inteligência e charme insuperáveis.
Pois bem, lá voltava eu desesperançado para casa quando cruzei com a Ana. Meu desânimo e frustração eram tão flagrantes que ela me convidou para um café ali mesmo na rodoviária. Depois que eu desfiei meu rosário de queixas, malandramente ela me apresentou uma solução: pagaria minha passagem de ida e volta para Brasilia, mais uma pequena verba para um eventual lanche noturno, desde que eu concordasse em levar e entregar uma pequena "encomenda".
Ora, na vontade que eu me encontrava, concordei de imediato. Ela se afastou para dar uns telefonemas e minutos depois já tinha todo o esquema arranjado: eu não precisava nem me ausentar da Rodoviária em Brasilia, o pessoal me encontraria lá mesmo. Daí, me estendeu a passagem e o dinheiro e um enorme pacote que recendia de longe a álcool. Conhecendo a fera, estava na cara que era material de panfletagem rodado em mimeógrafo.
Mesmo sabendo do risco que corria, minha vontade de assistir a corrida era maior e resolvi ariscar. Embarquei no ônibus umas nove da noite com o pacote no colo, rememorando as instruções da Ana. Com a viagem em andamento, comecei a fazer uns cálculos: como demorava umas duas horas e meia, ia chegar quase em cima da hora da largada, que estava prevista para meia noite. Horário meio apertado, mas que ainda dava para cumprir.
A zebra começou logo depois de Alexânia, quando o ônibus foi parado por uma blitz do pessoal do Exército que entrou para dar uma geral nos passageiros. Só deu tempo mesmo de jogar o pacote para baixo do banco e apresentar minha carteirinha de estudante ao soldado da PE que nem notou a mancha e o cheiro de de álcool na minha calça Lee. Depois de descerem dois caras tidos como suspeitos para averiguações, liberaram o ônibus com um atraso de uns 45 minutos.
Com o coração aos pulos, chegamos em Brasilia por volta de meia noite. Eu ainda não sabia, mas para minha sorte a largada estava atrasada em meia hora. Na maior agonia, ainda pela janela enxerguei os destinatários da "encomenda": dois jovens de cabelos longos, jeans surrados, tênis sujos Verlon e trajando umas japonas negras de feltro, o uniforme padrão dos "contestadores" da época. Mais bandeírissimo, impossível.
Doido para me ver livre daquele incomodo pacote desci rapidamente e fui fazer a entrega. Foi aí que me toquei de uns três caras jovens que circulavam por ali, perto dos dois panacas de japona que não se davam conta do risco que corriam. Tava na cara que eram meganhas da repressão. Embora trajassem calça Lee e camisa polo Lacoste como qualquer jovem classe média da época, o corte de cabelo à escovinha, a postura marcial e os músculos saltando das mangas não deixavam margem a dúvidas.
Não esperei para conferir. Joguei o pacote nos pés dos caras e saí em desabalada carreira escada rolante acima. Ainda deu para ver com o canto do olho os dois otários serem rendidos por dois dos meganhas disfarçados, enquanto o terceiro partia no meu encalço.
Mas eu conhecia bem a Rodoviária naqueles tempos. No pique, girei à direita no meio de uns guichês de passagens, virei á esquerda no rumo de uma lanchonete que vendia sucos e ali eu sabia que havia uma pequena entrada para um banheiro e saía do outro lado, quase junto da escada para o piso superior.
E foi por ali que eu enveredei, já saindo na parte de cima da Rodoviária, me dirigindo para os lados do Teatro Nacional, agora em passo mais regular e conferindo sempre se o meganha ainda estava na minha cola. Mas creio que o tinha despistado pois não vi mais o cara.
Com o coração na boca, dei a volta e me misturei no meio do povo que lotava o gramado do teatro, em frente ao Curvão da Rodoviária, um dos meus locais favoritos para assistir corridas.
Passei a noite inteira apavorado, olhando por cima dos ombros e desconfiando de qualquer transeunte ao meu lado.
Mas, apesar de toda esta agitação ainda deu tempo de assistir a largada e ver a bela luta noite adentro do Elgar do Toninho Martins/Luis Cláudio Nasser, a berlineta Interlagos-Corcel do Paulo César Lopes/José Paulo de Castro, o Volks 1800 cc da dupla paulista Pedro Victor de Lamare/Silvinho Toledo Piza, do VW #26 do Fernando Ramos/Jefferson Cardoso, e do Lorena-VW do Olavo Pires/George Pappas que duelaram a noite inteira pela liderança.
O resultado final foi:
1o. - Toninho Martins/Luis CLáudio Nasser - Elgar 1800 cc
2o. - Zeca Vassalo/Antonio Luiz Carvalho - Volks 1600 cc
3o. - Waldo Palmerston/Fernando Motta - Volks 1600 cc
4o. - José Marcondes Oliveira/Luis Antonio Alvim - Volks 1600 cc
5o. - Dirceu Bernardon/Waldir Lomazzi - Volks 1700 cc
6o. - Jacques Lima Rocha Filho/Inácio Correia Leite - Volks 1600 cc
7o. - José Julião Neto/Roberto Pinto - Interlagos 1000 cc
8o. - Carlos Alberto Toscano/Marcus Cyranka - Corcel 1300 cc
Ah, e que fim levou a tal da Ana? Depois dessa não a vi mais, sumiu de circulação. Soube anos depois que ela teria desaparecido na guerrilha do Araguaia, versão que nunca foi confirmada. Mas aí já é outra história...
Joaquim Lopes, o Mestre Joca, é colaborador do Mocambo Blog."
(fotos reprodução/Arq. Napoleão Ribeiro)
Caro Joca,
ResponderExcluirEm setembro de 69, Costa e Silva havia sofrido um AVC, Pedro Aleixo, Vice Presidente, foi impedido de assumir e criaram um governo com os Ministros das tres forças armadas.O Presidente Médici só veio depois.....
Sem querer criar polêmica: dizer que calça Lee e camisa polo Lacoste, era roupa de qualquer jovem classe média da época, é um exagero!
Abraços,
Hamilton.
Genial o texto. Adorei!
ResponderExcluirRárá! Grande história, com calça Lee ou sem calça!
ResponderExcluirComentário do meu amigo George encaminhado para o meu email:
ResponderExcluir"Jovino,
Dessas misturas inesperadas, lembro-me de uma parcela de jovens dos anos setenta que misturavam “eixo cardin com Teillard de Chardin”, ou automobilismo com filosofia.
Esse filósofo, jesuíta, palaentólogo, foi pego falsificando provas de suas teorias sobre a origem do homem.
Melhor para quem acabou preferindo automobilismo.
E o antigomobilismo mais ainda.
Abraço"
George,
ResponderExcluirLembro-me destes pseudos comunistas quando de um Festival de Cinema aqui em Brasília.
Conheci um jovem lá na porta do Cine Brasília que só falava em comunismo, coluna Prestes, etc, mas quando saímos para fora do cinema ele entrou em um carro de luxo novinho em folha e eu pensei como que um cara destes fala sobre uma ideologia que ele nem sabia como era, pois senão, não estaria montado em um carrão destes e sim pegando um ônibus como fazíamos nós do proletariado.
Jovino
Caro Jovino,
ResponderExcluirQue surpresa agradável saber que você reeditou esse post. Escrevi há algum tempo atrás, quando colaborava na coluna Retrovisor no blog do Flavinho Gomes.
Quanto aos comentários, obrigado pelas retificações. Realmente, em
setembro de 69 era a junta militar que governava o país.Então a repressão era mais braba ainda...
Na época, o movimento estudantil era muito efervescente, ser de "esquerda" pegava bem até com as menininhas. Falsos ou autênticos "comunistas" se achavam aos montes nas esquinas, ideologia de ocasião e conveniência. Coisas daquele tempo.
Quanto á indumentária, na Brasilia que conheci naquele tempo, quase todo mundo era de classe média, filhos de funcionários públicos, políticos ou militares. Ali a calça Levi´s 505, camisas Lacoste e mocassim Samello eram padrão.
Para os menos abonados - meu caso - sempre existia a opção da calça Lee ou camisas cáqui de dois bolsos e mangas longas, com uns butes de couro marrom e grossas solas de borracha. Eram um "must" em termos de "visual contestação".
Em tempo, Teilhard de Chardin era leitura quase que obrigatória na época, juntamente com Eric Fromm, Herbert Marcuse (quem não leu "Eros e a Civilização" ? Maior sucesso ejunto ás menininhas da época...) e Marshal McLuham, citado como o "papa da comunicação".
ResponderExcluirTeilhard era considerado de direita, sua obra tinha um conteúdo meio confuso, misturava no mesmo copo ciência, tecnologia e religião.
Tinha inimigos e detratores de ambos os lados. Mas era um filósofo e teólogo interessante, pelo menos original, coisa que não se acha facilmente hoje em dia.